A paixão segundo Rubem Alves

Por Isaias Costa

coração+apaixonado

Quem nunca se apaixonou não é? Quando estamos apaixonados parece que tudo na nossa vida fica mais colorido, as pessoas mais agradáveis, as raivas se esvaem, as palavras da pessoa amada soam como poesia nos nossos ouvidos, o coração bate mais rápido, nos tornamos mais risonhos etc. A paixão é um tema maravilhoso e que atrai praticamente todas as pessoas. Para refletir sobre isso, compartilho uma crônica incrível do grande escritor Rubem Alves.

Quando leio algo a respeito da paixão me vem em mente a bela frase do grande poeta Vinicius de Morais que diz assim: “Para se viver um grande amor é preciso ter a insensatez de um coração constantemente apaixonado”. Essa ideia é bem interessante porque uma pessoa sensata da forma que o Vinicius está dizendo, é aquela pessoa que desconfia de tudo e no fim, acaba se frustrando no amor. Muito cuidado para não ser você uma destas pessoas…

Veja o que o meu amigo Rubem Alves tem a dizer sobre esse sentimento tão forte e intenso. Espero que goste…

A paixão é emoção gratuita. Não há causas que a expliquem. Mas, quando acontece, ela age como uma artista: da paixão surgem cenas de beleza. Os amantes se imaginam andando de mãos dadas por campos floridos abraçados numa rede silenciosos, diante do fogo da lareira contemplando o rosto de um nenenzinho adormecido… Paisagens de paixão

Dedico esta crônica aos apaixonados, mesmo sabendo que servirá para nada: é inútil falar aos apaixonados. Os apaixonados só ouvem poemas e canções. A paixão, experiência insuperável de prazer e alegria, pelo fato mesmo de ser uma experiência insuperável de prazer e alegria, coloca o apaixonado fora dos limites da razão. Todo apaixonado é tolo.

Pode ser que ele escute a fala da razão. Escuta mas não acredita. Diz ele: O meu caso é diferente! Tolo mesmo é quem tenta argumentar com os apaixonados.

Começa, pois, assim, minha inútil meditação com um verso terrível de T. S. Eliot. Ele está rezando. Ele sabe que somente Deus tem poder para lidar com a loucura da paixão. Ele reza assim: . . . livra-me da dor da paixão não satisfeita e da dor muito maior da paixão satisfeita.

Todo mundo sabe que paixão não satisfeita dói. Mas poucos sabem que a paixão só existe se não for satisfeita. A paixão é fome. Ela só floresce na ausência do objeto amado. Mais precisamente, ela vive da ausência do objeto amado. Não se trata de ausência física, do objeto amado distante, longe. A dor da ausência física tem o nome de saudade.

Saudade tem cura. A saudade é curada quando o seu objeto volta. A dor da paixão é diferente. Não tem cura. A saudade do objeto amado, mesmo quando ele está presente, é o perfume característico da paixão.

Cassiano Ricardo sabia disso e escreveu assim:

Por que tenho saudade
de você, no retrato
ainda que o mais recente?
E por que um simples retrato
mais que você, me comove,
se você mesma está presente?

Que coisa mais esquisita! Como pode ser isso? Como se pode sentir saudade de algo que está presente? A resposta é simples: a gente sente saudade de uma pessoa presente quando ela está se despedindo.

Cecilia Meireles, desenhando sua avó morta, a quem ela muito amava, disse: Tu eras uma ausência que se demorava uma despedida pronta a cumprir-se. Dirão: é natural um dia ela possuirá o objeto da sua paixão. Mas a ‘dor muito maior’, da paixão satisfeita, não tem mais esperanças. O objeto se desfez. Ela vive na tristeza do objeto perdido.

Escrevi uma história sobre isso. A Menina era apaixonada pelo Pássaro Encantado. Mas ela sofria porque o Pássaro era livre, O Pássaro Encantado era sempre uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se. O Pássaro lhe disse que era preciso que fosse assim, para que eles continuassem apaixonados. Ele sabia que a paixão não ama pássaros em voo. Mas a Menina não acreditou. Prendeu-o numa gaiola.

Gaiola? Há as feitas com ferro e cadeados. Mas as mais sutis são feitas com desejos. Esquisito o que vou dizer: a alma é uma biblioteca. Nela se encontram as estórias que amamos Romeu e Julieta, Abelardo e Heloisa, O paciente Inglês, As Pontes de Madison, A Menina e o Pássaro Encantado. As estórias que amamos revelam a forma do nosso desejo. Delas escolhemos uma, é a nossa gaiola. Gaiola na mão, saímos pela vida à procura do nosso Pássaro. Quando imaginamos havê-lo encontrado, uh, que felicidade! Ficará feliz em nossa gaiola. Será o amante da nossa estória de amor: eu prá você, você prá mim. . . Nós colocamos lá dentro e pedimos que nos cante canções de amor.

Acontece que o Pássaro também tinha a sua estória. E era outra. Todo Pássaro deseja voar. Ele bate suas asas contra as grades, suas penas perdem as cores e o seu canto se transforma em choro. E, de repente, ele se transforma. Não mais o reconhecemos, é um outro. Essa é a razão por que a dor da paixão satisfeita é muito maior.

Passaros dezenho

* Para ouvir a leitura desse texto basta clicar [aqui]

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